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GUARDA COMPARTILHADA DE ANIMAIS: QUANDO O DIREITO ENCONTRA O AFETO

Por Raimundo Fabrício Paixão Albuquerque – Os tribunais brasileiros passaram a enfrentar uma questão que o ordenamento jurídico já não consegue adiar. Quando casais se separam, a disputa não envolve apenas bens ou guarda de filhos. Envolve também quem ficará com o cachorro, o gato, o companheiro silencioso que dividiu o sofá, acolheu tristezas e comemorou alegrias. O Código Civil chama isso de bem semovente. A vida chama de família.

Em 2018, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito de visita a um animal de estimação após a dissolução de união estável. O ministro Luís Felipe Salomão foi frontal, apontando que o regramento jurídico dos bens não basta para resolver disputas familiares dos tempos atuais. Não defendeu humanizar o animal. Propôs algo mais profundo, admitir um terceiro gênero jurídico. Nem coisa, nem pessoa. Uma categoria que o direito ainda precisa nomear, mas que a sociedade há muito reconhece.

Quatro anos depois, a Terceira Turma analisou caso semelhante: seis cachorros, despesas de manutenção, ex-companheiro que parou de contribuir. O ministro Marco Aurélio Bellizze classificou os animais como “seres dotados de sensibilidade”, mas negou pensão alimentícia. Para o ordenamento, quem fica com o animal arca sozinho com os custos.

Decisões mais recentes têm entendido que, mesmo não existindo uma lei específica sobre guarda de animais, é possível aplicar por analogia as regras de guarda previstas no Código Civil. Isso significa usar, de forma adaptada, as normas que regulam a guarda de filhos para organizar a custódia de pets após o fim de um relacionamento. Assim, os tribunais têm usado essa ferramenta para proteger o vínculo afetivo entre humanos e animais, garantindo convivência, cuidados e rotinas que atendam ao bem-estar do pet.

Entretanto, a guarda compartilhada de animais de estimação é inviável quando há animosidade entre as partes, pois a manutenção de contato forçado pode gerar conflitos que comprometem o bem-estar do animal (TJSP, 2025).

Essas decisões evidenciam o impasse. O direito brasileiro, desde o artigo 82 do Código Civil, trata animais como propriedade, bens móveis capazes de movimento próprio. A tradição romana ainda dita as bases. Os juízes percebem a inadequação dessa categoria diante da realidade afetiva, mas continuam vinculados à letra da lei. Reconhecem o vínculo, mas aplicam regras patrimoniais. Concedem visitação, mas negam alimentos. Acolhem o afeto, mas mantêm o animal no campo das coisas.

Projetos de lei tentam resolver essa contradição. O PLC 27/2018 propõe retirar os animais da categoria de objetos. O PL 179/2023 vai além: conceitua a família multiespécie, prevê pensão alimentícia, convivência, participação em testamento. Aproxima tutores da figura parental. Traduz, em linguagem jurídica, o que já acontece nas casas.

A resistência a esse reconhecimento se sustenta em uma visão de família que não corresponde mais à realidade social. Há décadas, o conceito deixou de se restringir a laços de sangue. A Constituição de 1988 abriu caminho para novas formas familiares; a jurisprudência consolidou a proteção às uniões homoafetivas e à parentalidade socioafetiva. A afetividade tornou-se critério de pertencimento.

E essa transformação coincide com outro movimento mais amplo: a revisão do nosso lugar no mundo natural. O antropocentrismo perde força diante da constatação de que a vida se organiza em interdependência. Não se trata de romantizar animais, mas de admitir o óbvio: eles também se apegam, sofrem com a separação, reconhecem seus tutores. A neurociência confirma: a convivência humano-animal libera ocitocina, o hormônio do apego. O vínculo é real, mensurável, biológico.

A afetividade atravessa espécies. Um idoso que vive com seu cão não possui apenas um pet; tem companhia que combate a solidão, estrutura a rotina, dá sentido ao dia. Uma criança que cresce com um gato aprende responsabilidade, empatia e, quando chega a hora, elabora o luto. Esses vínculos formam subjetividades. Ignorá-los juridicamente é recusar a própria realidade social.

O direito não cria a sociedade; reage a ela. O grande volume de ações sobre guarda compartilhada de animais revela um fato simples: para milhões de brasileiros, pets são membros da família. E isso não é impressão, é dado. O país tem mais de 139 milhões de animais de estimação. Muitas casas convivem com mais pets que crianças.

Assim, quando alguém disputa a guarda de seu cachorro, não pleiteia um bem móvel. Protege um laço afetivo que estrutura sua vida emocional. Quando se pede o direito de visitar o animal criado em conjunto, não se reivindica exercício de propriedade, mas continuidade de um vínculo construído ao longo de anos.

Os juízes sabem disso. Por isso criam saídas interpretativas, reconhecem a sensibilidade dos animais, mencionam vínculos afetivos, falam em categoria jurídica própria. Mas esbarram no Código Civil, que ainda os trata como coisas. Entre o afeto e a lei, o sistema oscila, e o lapso legislativo perpetua a insegurança; separações sem critérios claros de convivência; tutores arcando sozinhos com despesas antes compartilhadas; animais mudando abruptamente de ambiente sem que seu bem-estar entre na equação.

A solução não está em humanizar animais. Está em admitir que a convivência entre espécies produziu uma nova realidade afetiva, que pede tutela jurídica específica. Pets ocupam, simbolicamente, o lugar de filhos em muitas famílias. Isso não os transforma em crianças, apenas demonstra que o afeto humano se organiza de formas múltiplas e legítimas.

Hoje, as famílias estão à frente dos tribunais. E os tribunais, à frente da lei. O ordenamento corre atrás de uma realidade que não pediu permissão para existir. Animais já são tratados como família por quem vive com eles. Juízes já decidem como se fossem, ainda que a lei não acompanhe. Falta o Congresso reconhecer, formalmente, o que a vida já instituiu.

Quando isso acontecer, estaremos protegendo os vínculos afetivos humanos que se expressam por meio de outras espécies, estaremos reconhecendo que família é laço de cuidado, não de espécie. E reafirmando a essência do direito: servir à vida concreta, não preservar abstrações que já não descrevem o mundo que habitamos.

Raimundo Fabrício Paixão Albuquerque, Advogado, psicólogo, filósofo, mestre em sociedade e cultura, doutorando em ciências ambientais pela UFAM, e professor de direito na Wyden.

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