Por Agência Brasil – Alegria misturada ao choro incontido e tremores na fala e nas mãos. Estas foram as primeiras reações da jornalista Suzan Monteverde Martins, de 34 anos, ao ser comunicada que a Baixa da Xanda, em Parintins (AM), foi certificada oficialmente como a primeira comunidade autodefinida como remanescente de quilombo no município. A certificação foi dada pela Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, na última semana.
A localidade é o berço do Boi-bumbá Garantido, astro do duelo anual no bumbódromo do Festival Folclórico de Parintins, com outro boi, o Caprichoso, sempre no fim de junho.
A ligação de Suzan com o território vai além do cargo que ocupa desde 2019 na comissão de arte da agremiação, em meio a alegorias e tambores. O elo dela é ancestral.
Nascida e criada na comunidade, Suzan é, primeiramente, a bisneta do criador do boi-bumbá vermelho e branco, em 1913, Lindolfo Monteverde, um dos sete filhos de Alexandrina, apelidada de Dona Xanda. A benzedeira e artesã negra, descendente de escravizados, deu nome à comunidade quilombola, localizada a 370 quilômetros de Manaus.
Suzan foi uma das responsáveis pela mobilização iniciada em 2024, que exultou na realização de assembleias e reunião de documentos, escuta de relatos sobre ancestralidade negra, resistência e opressões sofridas pelos primeiros ocupantes daquele solo. Partes do processo que resultou, agora, na certificação de autodefinição da Baixa da Xanda como território de um quilombo.
Ela, que é também doutoranda em estudos de cultura contemporânea na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, entende que esse reconhecimento do Estado brasileiro não é só um papel, mas “a afirmação de uma história que sempre existiu e que, por muito tempo, foi apagada”.
“O Estado brasileiro está reconhecendo que aquele território tem uma história de resistência negra, de ancestralidade, de luta, de pertencimento. E de que ali ainda vivem descendentes de pessoas que fugiram da escravidão e que formaram um modo de vida baseado na coletividade, na cultura, na preservação da memória. E digo: nossos passos vieram de longe e eles importam”, disse emocionada Suzan Monteverde, bisneta do criador do Boi Garantido e tataraneta de Dona Xanda.,
Toada do boi e antropologia
“Tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber”. Foi lembrando os versos do samba Sei Lá Mangueira, do compositor Paulinho da Viola, que o doutor em antropologia Alvatir Carolino, de 53 anos, comemorou a emissão da Certidão de Autorreconhecimento pela Fundação Palmares.
O profissional – que também é professor titular e pesquisador do Instituto Federal do Amazonas – é o responsável pela construção do processo da Baixa da Xanda e pelo relatório antropológico que registra a trajetória histórica dessa comunidade e suas relações territoriais específicas. Toda essa documentação foi enviada à Fundação Cultural Palmares, em março deste ano.
Alvatir Carolino entende que o tempo de análise do processo pela União, na atual gestão da Fundação Palmares, cumpre o direito constitucional da titulação das terras quilombolas e não pode ser comparado com governos anteriores.
O antropólogo compara o andamento desse processo à experiência de certificação de outras duas terras remanescentes de quilombos: o segundo quilombo urbano reconhecido no Brasil, o do Barranco de São Benedito, no bairro da Praça 14, em Manaus; e o quilombo do Rio Andirá, no município de Barreirinha (AM).
Somado ao lado profissional, Alvatir Carolino revelou que tem memórias afetivas com o Garantido desde os 8 anos de idade, quando representantes do boi branco e vermelho foram brincar em um festival em Manaus, em 1980, e se ligaram à família dele.
Alvatir partilha lembranças de quando teve a oportunidade de conhecer Parintins. Por todas as histórias que ouvia sobre o Boi Garantido, ele manifestou interesse em sair da área central, logo após a igreja de São Benedito, e descer até a periferia da cidade, onde se encontrou na Baixa da Xanda, desde 1988. “Eu tinha uns 13, 14 anos e acho que já era meio antropólogo ali, porque o meu olhar estava sempre além, olhando para as pessoas e dialogando”.
Hoje, Alvatir Carolino, diz ter parentesco com a Baixa da Xanda. Ele é casado com outra antropóloga, que tem raízes familiares na comunidade e se emociona com a recente certificação.
“Foi uma extraordinária emoção que supera a do dia de minha titulação de doutor e da progressão ao cargo máximo na carreira do Ministério da Educação, o de professor titular. Esse reconhecimento, por tudo que trabalhei em outros reconhecimentos de quilombos na Amazônia, me afeta em um ponto emocional da minha alma, que é extraordinário, é indescritível. Estou muito feliz.”
A Certidão de Autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares é o documento inicial no processo de regularização fundiária de seu território como sendo de uma comunidade remanescente de quilombo.
A partir da certificação do governo federal, a comunidade Baixa da Xanda deve solicitar a abertura de um processo administrativo de regularização fundiária de seu território na superintendência regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no estado, para requerer o título de posse dessa terra.
O Incra, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é o órgão responsável pela identificação, demarcação e titulação, entre outras, das terras quilombolas no Brasil.